Cap 87- Passat azul

  Um cuidado eterno é uma ternura que a gente evita. A vontade de não deixar que nos toquem e nos afastem do mundo é o que prevalece, mas no fim de tudo há somente uma enorme carência jamais admitida.

 Olhar de criança, como se visse sua menina pedir colo. Eva não sabe o que mais dizer a Roberta para vê-la mais tranquila. Havia chegado em casa e encontrado a filha dormindo em sua cama e estranhou. Estava encolhida, como quando era menina a pedir um cantinho no quarto da mãe, somente quando despertou percebeu que tinha mesmo dormido ali porque precisava dela.

 A mão da mãe desliza nos cabelos da filha que molha suas pernas com uma ou duas lágrimas que não consegue evitar.

-Acaba comigo te ver assim... –Eva fica agoniada.

-Eu só preciso de um lugar seguro...

-Por quê? O colégio não é seguro?

-Não.

-E eu sou?

 Roberta olha para cima.

-Você só se faz de sonsa né D. Eva Messi?

-Ah, eu sei que você só precisa de alguém em quem confiar, não é isso?

-É...

-E sempre fomos só nós duas...

-Admito que apesar de todas as nossas brigas, eu sempre volto pra você mesmo.

-Volte sempre...

 Roberta dá um sorriso escondido e continua ali com a mãe. O que conta a ela não é bem toda a verdade, somente a parte de ter tido uma recaída, ficado com Diego de um jeito quase irracional, mas sem os detalhes que, lógico, tornaria tudo muito constrangedor até para as duas.

-Acho que você deveria ter esperado pra falar com ele.

-É, mas do jeito que tudo aconteceu, eu... Sei lá... Não consegui... –Roberta relembra. –Não quero voltar pro colégio.

-Tudo bem, hoje eu telefono pro Jonas e...

-Não, eu não quero mais voltar pra lá. –Roberta se levanta. –Nunca mais.

 Pronto. Armado o circo chamemos o palhaço, mas não, Tomás não irá sair com os meninos nesse dia. Ao que parece, nem ele nem Diego, que assim que saiu à procura dos amigos, acabou por desaparecer.

 Quando os pés vagarosos descem os degraus velhos do porão a tempos esquecido, faz o garoto se lembrar de como aquele lugar era sombrio, apesar de ser o único lugar seguro que tinham.

-Carla! –Diego a chama.

 Está com um bilhete dela em mãos, onde dizia que o porão estava aberto de novo e que precisava dele lá com urgência.

-Olá!

 Diego se vira e quase cai para trás com o susto.

-Você não fala não? –Otto pula sobe no sofá para ficar da altura de Diego.

-Você... Você é o?

-Sou um anjo. –As bochechas redondas ficam sérias. –Vim pra te ajudar a criar juízo menino! Como perdeu aqueles cachinhos lindos, hein bobão?

-Que? Então a Roberta tinha razão? Você está no colégio! Não morreu.

-Estou, mas quem disse que não morri?

-Ué, como assim?

-Quem te garante que não sou um fantasma? Posso ser uma assombraçããão!!! Buh!!!

 Diego olha para os olhos do menino que brilham com uma fresta de luz que entra pela escada.

-Eu garanto! –Carla desce. –Nenhum fantasma teria um apetite como o dele!

-Carla! Você sabia? –Diego se vira rápido.

-Sabia, só não podia falar nada, o Pablo ameaçou entregar o Otto para o juizado de menores. Eu menti pra Roberta dizendo que não tava levando comida pra ele e que o problema era a bulimia que tinha voltando.

-E o que aconteceu de verdade?

-Eu encontrei o Otto pela primeira vez quando eu perdi a competição de dança, eu queria me entupir de comida, mas ele apareceu, me deu o maior susto, mas no final eu quis ajudar porque ele também tinha me ajudado, né pirralhinho? –Carla bagunça o cabelo do menino que ri.

-O Pablo e o Rodrigo querem o que com ele?

-Eu não sei direito, mas depois do que o Otto viu no quarto 16 o Pablo trancou ele aqui pra não poder contar pra ninguém, principalmente pra você, que a Roberta não tava mentindo. Mas eu vi o Pablo entrar aqui um dia e descobri tudo. Um dia eu consegui roubar a chave do cadeado e fiz uma cópia pra poder alimentar esse piolhinho direito.

-Ela me traz todo tipo de doce, né docinho?

 Carla ri e se vira para Diego.

-Agora eu preciso da sua ajuda.

-Minha? Pra que?

-Pra me levar pra meu tio, ele é o único que gosta de mim. –Otto se intromete encostando o queixo no ombro de Carla e sorrindo.

-É só pra dar cobertura, o Tomás tá arranjando tudo pra levar ele esse fim de semana.

-Claro, claro... –Diego baixa a cabeça. –Eu ajudo sim.

-Que você tem?

-É a namorada! –Otto explica a Carla como se entendesse do assunto.

-Pior que ele tá certo. Eu procurei a Roberta em todo canto do colégio e não encontrei. Eu to desesperado pra falar com ela. Liguei pra casa dela, mas me disseram que ela não tá.

-Vocês brigaram?

-Não exatamente.

 Diego fica sem jeito e realmente não contaria o que houve para ela. Então ficam conversando sobre as várias possibilidades de tornar os problemas um pouco mais compreensíveis.

 Enquanto isso, há alguém se sentindo de fora da história. Alice estranha não ver os amigos em canto nenhum e se surpreende percebendo que o último que queria encontrar é o primeiro que acaba encontrando no jardim.

-Viu a galera? –Ela é seca com Pedro.

-Não.

-Mas sabe deles?

-Não.

-Sabe falar outra coisa?

-Sim.

 Ela revira os olhos.

-Quer saber? Fui.

-Ei, ei, ei! Espera, eu sei eles estão, vem comigo.

-Se sabem, por que ficou fazendo onda? –Ela tira o braço da mão dele.

-Você vem ou não?

 Alice hesita, mas como a curiosidade é destaque em sua personalidade, acaba indo com Pedro pelo jardim a fora, com a garantia de que encontraria os outros e saberia, de fato, porque todo mundo havia sumido.

 Até o anoitecer os rebeldes ficam assim, longe das vistas de todos, não comparecem às aulas e deixam as fofocas acesas como tocha olímpica. Já longe dali, na casa de Eva existe um silêncio gritante dançando no quarto de Roberta. Silêncio quebrado pela empregada que bate a porta.

-Pode entrar Dani. –Ela larga o livro sobre as pernas estiradas na cama.

-Telefone.

-Eu disse que era pra dizer que eu não...

-Mas é a Alice. Ela disse que era urgente.

-Urgente... Deve ter quebrado uma unha. -Roberta faz cara de tédio e estica a mão para pegar o telefone.

-Não era melhor ligar pra uma manicure não? –Ela atende Alice.

-Roberta é sério!

-Fala. –Conforme vai ouvindo, Roberta vai subindo na cama. –Como? Mas esses malucos tão fazendo o que?

-O Pedro e o Tomás não vão porque eu e a Carla impedimos, já o Diego...

-Tá, me dá o endereço.

 Roberta fica como louca a atravessar a noite com um motivo de enlouquecer qualquer um que tivesse à vida presa à outra.

 Já é madrugada quando os pneus riscam o asfalto. Motores quentes e jovens loucos brincam de viver e morrer pelas ruas do Rio. Em frente a dois carros, uma menina se prepara para soltar o lenço e deixar que partam queimando tudo que tem.

-Eu sabia que você era louco... –Roberta abre a porta do passat azul e entra. -...Mas não sabia que queria morrer!

-Roberta? –Diego a olha assustado. –Sai daqui, você tá louca?

-Ah! É você é que tá disputando racha e eu é que sou louca!

-Já vão dar a largada!

-Tudo bem. –A menina aperta o cinto. –Eu não saio desse carro sem você.

 Diego e Roberta se miram com a adrenalina à flor da pele, até que com medo do que pudesse acontecer, ele resolve desistir. . Só não contava que as pessoas que ali estão, não concordariam com isso. Ao acenar para o rapaz ao lado, tem uma conversa não muito afetiva pela janela do automóvel.

-É melhor você ir até o fim. –Os trejeitos são ameaçadores. –Melhor pra você e pra bonequinha aê...

-Bonequinha é a m...

-Roberta! –Ela a corta e retorna à janela. –Tá bom então, eu vou...

 Quando a ameaça vai embora, Diego pressiona Roberta, que está firme na poltrona do seu lado.

-Você tem que sair, eu não quero que se machuque!

-Um pouco tarde demais... Você já fez isso... –Ela joga indireta. –Agora vê se não faz de novo! –Ela introduz seu brilho marcante nos olhos dele, que o atravessam como flecha certeira e aponta para o fato de que segurasse firme aquele volante para que os dois saíssem vivos e ilesos desse “racha”.

 Dentro de um mesmo carro, estão presos pela situação e pela loucura de Diego, pela sede dele por adrenalina e pelo amor de Roberta, que não o deixaria sozinho nisso. Mesmo que dissesse um milhão de vezes que o odiava e não se importava com ele, nenhum de seus atos conseguiria provar isso. Porque estariam juntos para viver cada cena, não assistiriam na plateia o outro cair, nem vencer, estariam lá, vencendo ou caindo juntos, independente de qualquer coisa.


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