Cap 67- O coração precisa

 Antes do dia amanhecer, Diego trata de se levantar deixando Roberta ainda dormindo. Ele dá um beijo em sua testa e a cobre com o cobertor que estava afastado de seus braços. A menina nem se mexe enquanto ele vai se afastando. Deve estar em algum sonho bem distante, do qual seria um pecado acordar.

 Ele faz o mesmo caminho até seu quarto, mirando todos os lados com muita cautela e não é visto. Está realmente muito cedo, o sol acaba de nascer e não havia ninguém acordado ainda.

 Naquele meio tempo entre o resto da madrugada e o começo da manhã, Diego permanece em sua cama com as pernas esticadas sobre o lençol, as mãos atrás da nuca e um pensamento que o roubava toda a atenção.

 Até o momento não havia sentido medo... Ou havia?

 Diego não sabe bem codificar as sensações que tinha tido desde o que ouviu de Sílvia. Que poderia ter algo grave, além de um simples resfriado, que era o que tinha a princípio. Ele sabia que poderia ser algo muito bobo, somente um fator estressante, afinal um amigo sumido, aquela correria no navio atrás dele, a briga com o pai... Enfim, tudo isso poderia ter lhe feito mal.

 Mas ele fica em um estado de preocupação não consigo mesmo ou com sua vida somente, mas com seus amigos, sua família e principalmente com Roberta. E ao pensar nessas coisas ele vê o que é de verdade o amor, pois quando a gente gosta de alguém nossa vida fica em segundo plano e só chegamos a nos preocupar com a gente quando imaginamos que o nosso mal faria mal a quem a gente quer proteger. Então o bem estar do outro se torna prioridade e seríamos capazes de nos permitir o sofrimento se víssemos que o outro estava bem. Por isso muitas pessoas deixam seus amigos partirem, deixam seus romances acabarem, seus filhos tomarem as próprias decisões... Porque no fundo a gente sabe, que é a felicidade deles que importa, o resto é só resto, não é amor.

 Um pouco mais tarde naquela manhã, depois que quase todos já tinham se levantado, Márcia o visita.

-Já acordado? –Ela entra no quarto e se assusta ao ver o irmão vestido para sair.

-Vou levar a Roberta pra dar um passeio.

-E você pode?

-O que eu não posso mais é ficar aqui trancado!

-Já falou com a Sílvia?

-Não.

-Diego!

-Eu preciso de ar puro! –O rebelde calça os tênis na beira da cama sem olhar a irmã.

-Diego, você tem que ficar de repouso.

-Eu já repousei bastante Marcinha. –Ele se levanta. –Agora eu vou me divertir, meu coração precisa mais disso que qualquer outra coisa!

 E dando a volta pela irmã o rebelde chega ao corredor onde vai de encontro a Roberta que ainda dormia.

 Ele fica mais leve ao se sentar na cama e ver os olhos dela se abrirem junto com um sorriso.

-Bom dia...

-Bom dia... –A voz dela sai preguiçosa enquanto esconde o rosto no travesseiro.

-Vim te chamar pra dar uma volta! –Ele parece animado.

-Onde?

-Onde você quer?

-Mar. -Ela finalmente levanta o rosto.

-Então vai ser mar! –Ele a agarra e dá um beijo próximo ao ouvido que a faz se encolher. –... Hum...Vou te esperar pra gente tomar café.

-Tá bom, eu já vou.

 Um mar azul, uma areia quente abaixo dos pés... O barulho da água era uma música e tanto naquele dia tão lindo. O céu já não estava cinza e os gestos já não eram contidos. Podiam correr até a água sem medo outra vez, ao menos era melhor que ficar pensando que tinha algum problema nisso. E se houvesse, não importaria. Um dia alegre vale alguns dos riscos.

 E lá dentro da água eles seguram as mãos e se abraçam, e se beijam, e se levam na aproximação da pele e do espírito. E vai sendo mais que um momento qualquer visto por um passante do calçadão, mas que um presente, talvez um abismo que separa a realidade do sonho, um delicado e violento poder de mudar as consequências do destino. Pois a vida pode ser injusta, pode ser complicada e hostil, mas não pode obrigar ninguém a ficar triste com ela, não pode evitar que a gente queira um dia alegre dentro do peito, mesmo quando nuvens carregadas povoam o céu...

-Você tem certeza? –Roberta para na porta de casa.

-Tenho, não se preocupe. Amanhã a gente se vê na aula, não quero que o Franco te dê bronca.

-E você acha que eu ligo? –Roberta segura as mãos dele e ri.

-Eu sei. Mas vai lá... Eu to ótimo e apesar de querer muito você comigo, é mais seguro pra gente. Eu não resisto te ter tão perto do meu quarto e dormir em outra cama.

 Roberta segura o sorriso em um tom talvez levemente tímido.

-Imagina se pegam a gente ontem!

-Meu pai do jeito que é, iria comer o meu fígado!

-É, mas foi lindo... –Roberta dobra o olhar para ele.

-Todos os momentos com você são lindos.

 Ela se entrega nos braços dele e lhe dá um beijo tão longo e tão profundo que Diego quase se esquece de ir embora.

  Ela sempre o deixava assim, meio tonto, meio bobo, meio sem reação. A única forma em que não 0 deixava “meio” mas sim COMPLETAMENTE, era o fato de estar apaixonado. Isso sim se apoderava dele, e de todo ele.


 Diego volta para casa assim que deixa Roberta. Tem uma sensação boa e leve no peito que às vezes pesava e tirava sua alegria, mas mesmo assim vinha sempre um sorriso involuntário em seu rosto, sorriso esse que se desfaz quando ele abre a porta e dá de cara com o pai no sofá da sala.
 Leonardo se levanta assim que o vê. O rosto sério faz o garoto desviar e pegar o rumo da escada.
-Diego.
-Fala. -O rebelde para bem no meio da escada, mas responde de costas antes de olhar para o pai.
-A gente precisa conversar.
-Não acho.
-Diego, eu sou seu pai.
-Nem havia percebido.
-Olha como fala, eu...
-Me desculpa, mas eu não to com cabeça pra discutir não! Outro dia o senhor pode me insultar, pode me rebaixar, pode fazer o que o senhor quiser, mas hoje... -Ele faz uma pausa. -Hoje eu realmente não t0 a fim!
 Antes que Diego consiga subir o restante das escadas o pai dá a volta no sofá e aumenta a voz.
-E se eu te pedisse desculpas? -O homem força para que a frase saia e isso causa estranheza no filho.
-Desculpas?
-Sim. Desculpas.
-E porque exatamente? -Diego desce alguns degraus com um rosto desconfiado.
-Quer que eu me rebaixe?
 Diego ri de modo irônico ao ouvir a pergunta.
-Eu sabia que isso não era real. O senhor Maldonado é bom demais para se desculpar! -Ele proclama. -Quer saber? Eu não quero suas desculpas!
-Você não vai embora! -Leonardo o impede de subir.
-Vai me obrigar?
-Eu só quero conversar com você...
-Pra que? Pra outra vez me...
-Eu quero o seu perdão.
 Diego se assusta com a palavra "perdão".
-Como?
-Eu... -Leonardo engole seco e olha para o chão. -Eu sinto não ter sido um pai que tentasse te entender meu filho...
 Diego desce as escadas pouco a pouco com os olhos assustados. Realmente não esperava ouvir isso do pai que continua a falar:
-Eu não sou o tipo de pai que sabe falar o que sente, ou demonstrar... -Ele fica sem jeito com cada palavra. A falta de costume em se expressar é muito nítida. -Mas eu...
-O senhor o que? -Diego para frente ao pai e os dois se olham.
-Eu amo muito você filho. Eu daria minha vida por você, pela sua felicidade, pela sua saúde! Eu sinto muito, eu preciso do teu perdão.
-Pai. -Diego o abraça sendo que ele nem esperava tal abraço. -Eu também amo o senhor.
 Leonardo se emociona com o gesto do filho e é percebido de longe a maneira como ele levanta os olhos para não demonstrar a lágrima que lhe enchia os olhos.
 E é assim quase sempre com as pessoas mais duras, elas guardam no fundo dos seus corações todos os sentimentos mais fortes que tem, evitam dizer ou demonstrar. Parecem ser fortes, mas na verdade são muito mais frágeis que qualquer outra pessoa que demonstra os sentimentos. Elas são medrosas, tem medo de sofrer, medo de serem criticadas, mal interpretadas... Então esconder é o que as priva do mal estar, é a salvação delas.




 Passa então as horas e bem depressa chega a segunda-feira com seu jeito de preguiça e suas olheiras de horas domingueiras. Todos de volta das férias e passando os portões do colégio percebem logo algo diferente acontecendo.
-Atenção todos! -Uma voz masculina gritava no microfone e vinha da porta principal da entrada do Elite Way.
-O que é isso? -Carla olha para Tomás.
-Não sei, vamos lá pra perto.
 Os alunos vão chegando e se agrupando em frente a escada onde um homem de meia idade, cabelos brancos, roupas formais, uma postura de soldado e um rosto cruel continua a falar ao lado de vários outros.
-Tenho um aviso para dar em nome do diretor do colégio, senhor Jonas Araripe! -Ele olha todos por cima. -Este colégio estará agora sobre o auxílio da experiência militar dos anos 90...
 Os alunos ouvem e não acreditam, começa então um alvoroço, uma baderna. Todos falam entre si e reclamam enquanto o homem continua a falar em voz alta.
-Teremos tarefas separadas para moças e rapazes, todos os dias às 6 da manhã! Monitoria nos corredores, sala de estar e pátio em horários vagos!...
-O Jonas ficou doido? -Alice se vira para Roberta. -Colégio militar?
-Ah, não vai ser "militar" mesmo!
-Ah, não? E aquele cara lá em cima é o que?
-Sei lá, um soldado velho e decadente?
-É, mais que vai ferrar nossa vida...


 As meninas decidem não ouvir toda a tagarelice de horários e seguem para o quarto, Roberta de celular no ouvido contando tudo pra Eva.
-Tô te falando! O Jonas tá querendo transformar esse lugar, que já é o "O" em um internato militar!... Hã? -Roberta se assusta. -Como assim, você já sabia? 
 Alice fica de olho arregalado para a conversa de Roberta e Eva enquanto retira as roupas da mala sobre a cama. Assim que acaba a ligação ela quer saber:
-E aí? Ela sabia?
-Sabia! -Roberta se irrita e taca o celular na cama.
-Mas ela concordou?
-Não, né! Mas disse que na reunião que teve quando a gente tava no cruzeiro houve uma votação com todos os pais e eles aprovaram uma reforma no colégio em que aceitavam uma diretriz militar!
-Estamos ferrados! -Alice conclui.


 No corredor da ala masculina uma conversa parecida corre enquanto os dois rapazes caminham devagar. 
-6 da manhã!! -Tomás reclama. -A essa hora eu to no 10º sono!
-E você ouviu né? Vão monitorar tudo! A gente vai ser vigiado e vai ter que agir feito robô aqui dentro! Só "sim senhor!", "Não senhor!" -Diego acrescenta.
-E como a gente vai namorar?
-Ah, a gente dá um jeito, Tomás! Sem a Roberta eu não fico!
-Bom dia... -Os dois são surpreendidos por dois rostos familiares.
-Vocês?
-Lembra-se de nós?
-O que fazem aqui? -Diego não compreende.
-Somos os novos inspetores. 
-O que?
-Sim, o comandante decidiu contratar jovens, porque ninguém melhor que a gente pra saber as manhas dos adolescentes. Vocês podem enganar os adultos, mas nós não!
 Um deles havia permanecido calado, mas então aparece.
-Desculpe, mas temos que ir, comportem-se porque estaremos de olho, hein! Não vamos facilitar por nos conhecermos e tomarmos uns drinques juntos! Sabemos que namoram, mas aconselho que guardem seus hormônios para os sábados e domingos, porque aqui dentro não haverá mais namoro.
 O olhar de satisfação deste último deixa Diego com uma expressão enfurecida por dentro, mas se conteve até que eles dobram o corredor.
-Eu não acredito que são eles!


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